O
termo ONG engloba um vasto universo de organizações cuja natureza e fins
diferem bastante entre si, não havendo uma definição precisa e unanimemente
aceite. Podemos dizer que as ONG são organizações formalmente constituídas,
independentes, que actuam em diversas áreas (direitos humanos, ambiente, migrações,
desenvolvimento, acção humanitária, etc.) com vista a gerar melhorias na
sociedade, sejam de impacto mais limitado no tempo, sejam promotoras de
mudanças estruturais.
O
universo das ONG abrange áreas de trabalho e realidades muito díspares. Focar-nos-emos
aqui nas ONG que intervêm na Cooperação para o Desenvolvimento, na Ajuda
Humanitária e de Emergência, bem como nos domínios da Educação e Sensibilização
para o Desenvolvimento e na Advocacia, ou seja, aquelas que foi convencionado
designar como ONG de Desenvolvimento (ONGD). Na sua base legal define-se que
dos seus fins não constam os fins lucrativos (tal significando no entanto que
podem desenvolver actividades económicas lucrativas em domínios coerentes com a
sua missão e facilitadoras de condições económicas para o seu prosseguimento, mas
não podem distribuir os lucros entre os membros), nem político-partidários,
sindicais, militares ou religiosos. com vista a um mundo mais justo, mais
inclusivo e menos desigual.
Nos últimos 20
anos, as ONGD ganharam visibilidade e reconhecimento, muito devido à sua
proximidade com as populações, à sua flexibilidade e capacidade de acção
rápida, experimentação de abordagens inovadoras, mas devido também ao seu papel
de advocacia, de monitoria de políticas e de defesa dos direitos humanos. Ao
mesmo tempo, a sua progressiva profissionalização favoreceu a capacidade de se
afirmarem enquanto actores com múltiplas competências, de pleno direito e
parceiros-chaves, chamados, em muitos países, a participar na definição das
políticas de Cooperação e de Desenvolvimento.
As ONGD enquanto actores do
Desenvolvimento
As
ONGD são actores incontornáveis do Desenvolvimento, quer pelas finalidades que
prosseguem e o trabalho que desenvolvem, quer pelo volume de recursos,
incluindo financeiros, que mobilizam e gerem. As actividades de advocacia em
prol do desenvolvimento e o debate em torno da definição de prioridades
políticas e da sua monitorização contribuem para a sensibilização das
populações dos países financiadores de Ajuda Pública ao Desenvolvimento e também
para a percepção da opinião pública em relação à Cooperação para o
Desenvolvimento. Concorrem ainda para a implementação das políticas de
cooperação nacionais e europeia. De acordo com a OCDE, em 2009, as ONG geriram
pelo menos 13% da totalidade da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) dos
países membros do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD)[1]
(a quota em Portugal, embora com sentido crescente, não ultrapassa ainda os 3%).
Praticamente
todos os países membros do CAD/OCDE[2]
têm uma política de colaboração com as organizações da sociedade civil. No caso
de Portugal, esta é parte integrante da Visão Estratégica para a Cooperação
Portuguesa (2005-2009)[3],
cujo balanço destaca o papel activo da sociedade civil portuguesa e o
incremento do diálogo entre o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento
(IPAD) e a Plataforma Portuguesa das ONGD[4].
Em
2008, governantes e responsáveis de agências multilaterais reconheceram, no
Terceiro Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, a importância das OSC
“enquanto actores de desenvolvimento a título próprio, cujos esforços
complementam os dos governos e do sector privado”[5].
Em Acra, países financiadores da APD e os Países em Desenvolvimento (PED) assumiram
o compromisso de aprofundar a colaboração com as OSC, criando e/ou reforçando
um ambiente favorável à sua participação, compromisso reiterado em Busan em
Dezembro de 2011[6], onde as
OSC viram reconhecido o seu papel como promotoras de acesso aos direitos e na
definição, monitorização e implementação das políticas de desenvolvimento.
As ONGD enquanto facilitadoras
de acesso a bens públicos
Nos
PED as ONGD participam em iniciativas que facilitam o acesso das comunidades a
serviços sociais básicos, politicas públicas onde se registou um enorme desinvestimento
por parte de muitos Estados (e mesmo à anulação das suas capacidades internas),
a partir dos Programas de Ajustamento Estrutural, promovidos pelo FMI e Banco
Mundial e adoptados pelos PED como condição de acesso a apoio externo. Devido em parte à
sua grande proximidade às populações, as agências financiadoras têm vindo a
considerar cada vez mais as ONGD como parceiras-chave para o objectivo global
de erradicação da pobreza.
Em simultâneo
verifica-se um aumento de projectos da iniciativa das agências financiadoras e
por elas desenhados, em que as ONGD se limitam ao papel de executantes, num
novo segmento de mercado que garante a sua sustentabilidade financeira. No
entanto, estas situações de subcontratação, em que as ONGD estrangeiras
garantem uma execução de projectos e um “reporting” de acordo com os padrões de
exigência das instituições financiadoras, têm vindo a gerar efeitos negativos nas
ONGD locais, (e por vezes para os próprios Estados dos PED) que se vêm
subalternizadas e substituídas, pondo assim também em causa a durabilidade e
sustentabilidade futura e perpetuando a dependência da Ajuda ao
Desenvolvimento.
Encontramo-nos assim
perante a necessidade de debater e pensar o papel das ONGD, muitas vezes
encarado como um papel de gestão de fundos e de projectos – papel que lhes
tolhe em parte a sua capacidade de formular propostas e gerar mudanças, e as
acantona numa esfera de controle por parte dos doadores.
O
que distingue as ONGD dos restantes actores da Cooperação
As ONGD têm um papel que vai muito além da facilitação
do acesso das comunidades a serviços que os Estados podem não estar em
condições de assegurar. Elas têm por fim o objectivo de suscitar mudanças
sócio-económico-políticas, cabendo-lhes assim também um papel de sensibilização
e de advocacia e influência social e política. Fazem parte do debate pela
qualidade da democracia e constituem-se como força de pressão, chamando a
atenção para questões como a abordagem baseada nos direitos, sustentabilidade
ambiental, as questões da transparência, da luta contra a corrupção, a coerência
das políticas nacionais. Ao contribuírem para monitorização das políticas
nacionais e programas internacionais, constituem-se como força de mudança – um
exemplo disto é a plataforma Better Aid que representou a sociedade civil nos
Fóruns de Acra e Busan, com resultados muito concretos nas decisões políticas
aí tomadas. As ONGD tornaram-se de facto num elemento importante, e
reconhecido, da governação democrática mundial.
As
ONGD e as relações de parceria internacional
para o desenvolvimento
para o desenvolvimento
Embora
sejam actores com a mesma natureza, as ONGD do mundo desenvolvido e as dos PED
não conseguiram quebrar as
relações assimétricas de poder existentes. Verifica-se aliás uma tendência
crescente, por parte de ONGD europeias de competir com as ONGD dos PED para a
obtenção de fundos, ou reduzindo-as a um papel instrumental para obtenção de recursos
financeiros “em parceria”, mas secundarizando a sua participação efectiva. O
próprio conceito de “parceria” tem sido contestado e objecto de intenso debate
nos últimos anos. Existe um pressuposto óbvio de que a Cooperação deve conduzir
a uma maior autonomia, empoderamento e sustentabilidade das ONGD nos PED, levando
a um maior reforço da Sociedade Civil local: com uma efectiva liberdade de
determinar a sua própria estratégia e modelos de intervenção e, em conjunto,
contribuírem para a construção de uma relação horizontal inter-pares, em vez de
relações que bloqueiam as organizações dos Países em Desenvolvimento em
relações verticais de poder e na perpetuação da dependência.
Por outro lado muitas ONGD europeias dependem financeiramente
de fundos públicos, o que limita a sua flexibilidade e independência, levando-as
muitas vezes a impor condições às ONGD suas parceiras dos Países em
Desenvolvimento. Além disso, existem dados objectivos que configuram uma ausência
de confiança da parte de muitas ONGD europeias nas suas congéneres dos Países
em Desenvolvimento, dando mesmo lugar a perguntar se não se trata de travar de
facto as formas de financiamento directo às ONGD nos Países em Desenvolvimento.
Existe outra dimensão que pode representar um outro
factor de desequilíbrio de poder: as representações e imagens criadas sobre os
Países em Desenvolvimento. À semelhança dos media, nas últimas décadas, a
representação de África e da Ásia tem sido construída também por imagens
difundidas pelas organizações internacionais e ONGD, numa tentativa de mostrar a
sua contribuição para melhorar a vida das populações. O recurso a imagens de
calamidade, pobreza ou conflito constrói representações das populações locais
como actores passivos, apenas à espera de ajuda externa. Na última década
assiste-se a um debate – interno e externo – nalgumas ONGD sobre o seu papel
como mediadoras entre a sociedade onde se inserem e as sociedades com quem cooperam.
Porém, a prática de ocultação das ONGD parceiras na comunicação das ONGD europeias
é ainda dominante, dando origem a uma representação unilateral dos Países em
Desenvolvimento.
Da necessidade da
auto-regulação
As ONGD têm-se vindo a constituir como força de
pressão sobre os seus governos, no sentido de uma maior accountability e transparência por parte destes. Todavia, as suas próprias
práticas nem sempre são consistentes com estas reivindicações. A prestação de
contas, por exemplo, é uma das áreas nas quais as ONGD precisam imperiosamente
de melhorar o seu desempenho, publicando de forma pró-activa, clara e atempada
os seus relatórios de actividades e financeiros - uma boa prática que lhes
permitirá reforçar a sua credibilidade junto dos doadores e do público em geral,
não só relativamente ao dinheiro público, mas também as contribuições privadas.
Mas convém não esquecer que a prestação de contas não pode ser apenas “para cima”, ou seja
para com os financiadores, mas deve ser também para com os outros parceiros e
populações envolvidas e não se esgota no tema da gestão eficiente dos recursos
e no alcance dos objectivos.
O papel progressivamente mais importante
das ONGD, quer na esfera social quer na esfera política, acarreta um maior
escrutínio sobre as suas actividades e sobre as práticas de gestão. O tema da
auto-regulação das ONGD tem-se tornado cada vez mais premente, havendo necessidade
de debater e definir princípios e modos de actuação comuns, no sentido de
reforçar a coerência com os princípios, a responsabilização e a sua
contribuição efectiva para o desenvolvimento, num pano de fundo de relações de
poder equilibradas.
A auto-regulação
pode assumir variadíssimas formas como, por exemplo, a adopção de códigos de
ética e conduta, com o objectivo desenvolver mecanismos de controle que balizam
as práticas das ONGD e dêem confiança aos seus stakeholders. No entanto, estes códigos, para serem efectivos,
precisam de ser vinculativos e definirem a instância de poder de monitorização
(seja ela externa seja inter-pares).
Os mecanismos de
auto-regulação passam assim pela afirmação da responsabilidade social das
organizações e pela discussão de questões éticas, não só no plano financeiro. Uma postura ética exige tornar
claro e público os valores pelos quais as ONGD se regem, valores que devem ser
postos em prática em toda a linha de actuação da organização: na utilização dos
fundos, na política de comunicação, na política de gestão do pessoal, etc. Os Princípios de
Istambul, aprovados em Setembro de 2010, são um exemplo de mecanismo de
auto-regulação, essencial para incrementar a accountability das ONGD.
Relação das ONGD com o Estado
Os governos participantes do Processo de
Paris sobre a Eficácia da Ajuda assumiram-se como responsáveis pela criação de
um ambiente favorável à actuação das ONGD, a começar pela criação de condições
legais nesse sentido. Em Portugal, o quadro legal foi definido em 1998, num
Estatuto das Organizações não Governamentais de Cooperação para o
Desenvolvimento (Lei n.º 66/98 de 14 de Outubro[7]).
A Plataforma Portuguesa das ONGD (constituída
em 1985) tem desempenhado um papel importantíssimo para o reconhecimento das
ONGD como legítimos actores da Cooperação. Contudo, a reivindicação pelo
direito de participação na definição das políticas e programas de cooperação
continua actual.
Apesar da relação das ONGD com o Estado estar sujeita a oscilações (dependendo
aliás demasiado do perfil das pessoas com a responsabilidade política e
institucional no sector e menos das instituições propriamente ditas), foram
concretizados avanços significativos. Nos últimos anos, a criação do Fórum da Cooperação
para o Desenvolvimento, que reúne as diversas expressões da sociedade civil com
os responsáveis públicos do sector, contribuiu consideravelmente para um
reconhecimento mútuo e para a criação de um espaço de debate de políticas,
apesar da direcção centralizada e do direito de iniciativa ter sido limitado
aos responsáveis governamentais e das instituições do Estado. A adopção de
Normas e Critérios para as Candidaturas de ONGD ao co-financiamento de
projectos de Cooperação e de Educação para o Desenvolvimento, bem como a
abertura regular dessas candidaturas são outros exemplos de avanços positivos.
A
independência das ONGD face ao Estado é uma sua mais-valia no sector da
Cooperação para o Desenvolvimento. É essa independência que lhes permite por um
lado definirem as suas prioridades em articulação com os seus parceiros de
desenvolvimento e, por outro, desempenharem o papel de monitoria de políticas
atrás referido. Mas a independência é ao mesmo tempo o calcanhar de Aquiles das
ONGD. E a saída tem que ser encontrada por ambos os lados: do lado do Estado com
a recusa de tentações de controle e instrumentalização, antes contribuindo para
a potenciação deste capital de desenvolvimento e de democracia; do lado das
ONGD procurando consolidar e alargar alianças, acessos a outras fontes de
recursos, num processo que se poderia chamar de internacionalização socialmente
responsável.
pela equipa da ACEP
(Ana Filipa Oliveira, Fátima Proença e Liliana Azevedo)
[2] O CAD da
OCDE é composto por 23 paises: Alemanha,
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos da
América, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Itália, Irlanda, Japão, Coreia do
Sul, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça,
e Comissão Europeia
[6] Busan
Partnership Agreement for Effective Development Cooperation, Artigo 20, p.6, www.aideffectiveness.org/busanhlf4/images/stories/hlf4/OUTCOME_DOCUMENT_-_FINAL_EN.pdf
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