quarta-feira, 30 de novembro de 2011

QUALIDADE DA COOPERAÇÃO E DO DESENVOLVIMENTO: UM DESAFIO TAMBÉM ÀS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL

A reforma da arquitectura da Ajuda ao Desenvolvimento, enquanto factor de melhoria dos seus impactos, tornou-se uma discussão central no início do século XXI, num processo iniciado em Roma em 2003 e aprofundado em Paris, em 2005, no 2.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda.

O encontro de Paris reconheceu pela primeira vez as Organizações da Sociedade Civil (OSC) como potenciais participantes na identificação das prioridades e na monitorização dos programas de Desenvolvimento. Porém, falhou ao não reconhecer em pleno as OSC como actores de Desenvolvimento, não tendo em conta as suas prioridades, preocupações ou programas. Ou seja, a perspectiva de Desenvolvimento das OSC ficou, em grande parte, à margem do processo liderado pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

Neste contexto, e paralelamente à agenda delineada pelos Doadores – governos e organizações internacionais –, a Sociedade Civil de ambos os hemisférios começou a reunir esforços e a organizar o debate sobre a sua visão para o envolvimento no processo de Eficácia da Ajuda. Em 2007, foi criada a plataforma Better Aid (de que a ACEP faz parte), que começou a desenvolver programas de advocacy em torno dos temas da qualidade da Ajuda ao Desenvolvimento.

Em simultâneo, e com o apoio de diversos países doadores, foi criado o Grupo Consultivo sobre Sociedade Civil e Eficácia da Ajuda (Advisory Group on Civil Society and Aid Effectiveness[1]), um grupo multi-stakeholder que estabelece uma ligação formal entre OSC e os países membros OCDE, definindo-se como “facilitador” da participação da Sociedade Civil em Fóruns de Alto Nível posteriores[2].

Uma das características distintivas do 3.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda que teve lugar em Acra (2008), Gana, foi precisamente o grau de importância atribuído à Sociedade Civil. Comparativamente aos Fóruns anteriores, Acra representou um momento de viragem, enquanto processo mais inclusivo, abrangendo significativamente a participação das OSC – que para ele se prepararam –, culminando num fórum próprio sobre a Eficácia da Ajuda, onde foram decididas as questões chave a propor ao Fórum de Alto Nível.


Mais de 80 representantes de OSC participaram na reunião oficial, atribuindo um alto nível de prioridade ao debate sobre a transparência dos fluxos de Ajuda ao Desenvolvimento dos países doadores e tendo um papel decisivo na sua inclusão no documento final – a Agenda para a Acção de Acra (AAA). Contudo, o grande sinal de mudança em Acra, para a relação com as OSC, foi o reconhecimento oficial do seu papel como actor de Desenvolvimento, explanado no parágrafo 20 da AAA[3]:

20. Aprofundaremos o nosso compromisso com as OSC, enquanto actores de Desenvolvimento a título próprio, cujos esforços complementam os dos governos e do sector privado. Partilhamos um interesse em garantir que os contributos das OSC para o Desenvolvimento atinjam o seu pleno potencial. Com este objectivo:
a) Convidamos as OSC a reflectir sobre o modo como podem aplicar os princípios de Paris sobre eficácia da ajuda, de um ponto de vista das OSC.
b) Acolhemos com agrado as propostas das OSC para nos empenharmos conjuntamente num processo envolvendo múltiplos intervenientes, liderado pelas OSC, que promova a eficácia das OSC no Desenvolvimento. Como parte desse processo, procuraremos: i) melhorar a coordenação dos esforços das OSC com programas governamentais, ii) incrementar a responsabilização com vista a resultados das OSC, e iii) melhorar a informação sobre as actividades das OSC.
c) Trabalharemos com as OSC de modo a criar um ambiente favorável, que potencie os seus contributos para o Desenvolvimento.

Apesar do espaço conquistado pelas OSC no processo de Eficácia da Ajuda desde Paris, as suas preocupações não estão ainda suficientemente integradas nos documentos oficiais, nomeadamente no que diz respeito à abordagem do desenvolvimento baseada nos Direitos Humanos e à introdução de uma agenda de apropriação democrática.

A primeira grande questão suscitada logo no início do processo pelas OSC – Eficácia da Ajuda versus Eficácia do Desenvolvimento – parece meramente conceptual. Contudo, a passagem da abordagem da agenda da Ajuda para uma agenda de Eficácia do Desenvolvimento representa a abrangência de um leque muito mais diversificado de áreas – de que a Ajuda ao Desenvolvimento é parte integrante mas não é elemento único –, tornando-se uma visão holística, capaz de garantir a integração coerente de todos os elementos, em todas as esferas de actividades em que as OSC estão empenhadas (Proença, 2010). Ou seja, a Eficácia do Desenvolvimento parte do argumento de que o Desenvolvimento efectivo exige mais do que simplesmente uma Ajuda eficaz. E este debate em português precisa aliás de atender à conotação “contabilística” da ideia de Eficácia, que arrisca a suscitar abordagens limitadas à obtenção de resultados quantitativos, pelo que, entre nós, não é uma mera questão de semântica acentuar o termo efectivo, como alternativo ao termo eficaz.

No final de Novembro proximo, durante os quatro dias do 4.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda em Busan (Coreia do Sul), todos os actores de Desenvolvimento a nível mundial – desde do sector público, sector privado, sociedade civil – são chamados a contribuir para a elaboração de uma acção concertada para a Eficácia da Ajuda e do Desenvolvimento. Será a primeira vez que a Sociedade Civil irá participar, numa base de igualdade, com outros actores anteriormente reconhecidos. Busan é, portanto, considerado um ponto de chegada e “o início de uma nova era” (Tujan, 2011).

De acordo com as conclusões do processo de debate interno à Sociedade Civil, é fundamental o progresso em quatro áreas distintas, mas interdependentes, no processo de reforma da Ajuda ao Desenvolvimento, nomeadamente:

1.       Na avaliação completa e no aprofundamento dos compromissos de Paris e Acra;
2.       No reforço da Eficácia do Desenvolvimento através de uma abordagem baseada nos Direitos Humanos;
3.       No apoio às OSC como actores independentes de Desenvolvimento de pleno direito, e no compromisso da promoção de um ambiente favorável ao seu trabalho a nível global;
4.       Na promoção de uma arquitectura de Cooperação para o Desenvolvimento justa e igualitária.
(Better Aid, 2011)

Da apropriação nacional à apropriação democrática

Na revisão dos compromissos assumidos anteriormente em Paris e Acra, existe uma questão que tem sido alvo de críticas ao longo dos últimos anos – a questão da apropriação nacional. Considerado um dos princípios-chave da Declaração de Paris para a Eficácia da Ajuda, a apropriação nacional diz respeito à prioridade dada à efectiva liderança por parte dos chamados países beneficiários dos programas e reformas necessárias ao Desenvolvimento. Porém, esta é uma visão limitada, pois que limita a apropriação apenas por parte dos governos nacionais dos Países em Desenvolvimento e em diálogo com as instituições ou países doadores. A Better Aid defende que a apropriação deve ser, acima de tudo, democrática, tanto em extensão como em profundidade, ou seja: ela deve ir desde a definição das políticas de Desenvolvimento ao seu planeamento e implementação no terreno, e incluir o esforço conjunto de todos os actores envolvidos no processo de Desenvolvimento:

“As vozes dos cidadãos, bem como as suas preocupações e direitos – de mulheres e homens, rapazes e raparigas – devem ser a base de planeamento e acção do Desenvolvimento nacional. A apropriação democrática requer instituições de governação fortes para a participação e prestação de contas, com especial atenção para os direitos das populações afectadas e vulneráveis. Os doadores e governos devem por isso assegurar a protecção dos direitos cívicos e políticos, através de processos abertos e inclusivos para o envolvimento e accountability das OSC, governos locais, parlamentares, um sector de media livres e o sector privado”
(Better Aid, 2011)

Resumidamente, a apropriação democrática coloca de forma mais clara as pessoas no centro da Eficácia da Ajuda e do Desenvolvimento, ao assegurar a participação dos cidadãos dos Países em Desenvolvimento e não só dos seus governos. Também nesta questão Acra constitui um upgrade à visão limitada da Declaração de Paris, ao recomendar o envolvimento de todos os stakeholders no aprofundamento da apropriação local e democrática, isto é, de uma apropriação mais inclusiva. Vários autores são unânimes em considerar que o envolvimento das OSC e das suas acções de lobbying foram fundamentais para a evolução gradual do conceito de apropriação desde Paris. Neste processo, as OSC procuram dar agora o seu contributo em Busan apelando à “democratização da agenda a Eficácia da Ajuda” (Tujan, 2011).
A democratização da agenda de Ajuda ao Desenvolvimento significa que os resultados dos programas e políticas de Desenvolvimento devem ser sentidos a nível local, indo ao encontro das prioridades e necessidades reais das populações. É neste ponto que as OSC podem desempenhar um papel crucial no processo de Desenvolvimento, pela sua proximidade aos problemas, ou seja, pela sua capacidade de comunicar e chegar às populações mais pobres e pelo seu carácter inovador e catalisador no processo de transformação social.

 
O ambiente (des) favorável

Com o reconhecimento das OSC como actores de Desenvolvimento em Acra, os governos comprometeram-se a proporcionar-lhes um ambiente favorável, em conformidade com compromissos internacionais, como por exemplo a Declaração das Nações Unidas sobre os Defensores dos Direitos Humanos (1998). Porém, desde Acra que “o progresso de melhoramento do ambiente favorável para as OSC tem sido escasso e a implementação dos compromissos internacionais sobre o ambiente favorável tem sido lenta na melhor das hipóteses” (Concord, 2011).

Diversos relatórios produzidos por plataformas internacionais de Sociedade Civil e pelas próprias OSC denunciam que, desde Acra, o ambiente está menos favorável para as OSC em muitos países. É o caso do Act Alliance[1] que analisou o espaço político das OSC em África nos últimos três anos, chegando à conclusão que, num número crescente de países, a Sociedade Civil não está incluída na política de planeamento, implementação e monitorização dos Governos e doadores tal como está previsto na AAA. Pelo contrário, em diversos países a Sociedade Civil é alvo de estigmatização, criminalização e restrições a nível administrativo e legislativo, além ser vítima de intimidação.

Já a ACPPP – Africa Civil Society Platform on Principled Partnership, no relatório “Democracy, AID and Disenabling Environment: Motivation and Impact of Disenabling Environment on Development work in Africa” (2011)[2] defende que as OSC africanas estão a enfrentar uma das maiores crises dos últimos 50 anos do continente.

De acordo com a organização, os compromissos assumidos internacionalmente como a Declaração de Paris ou os Princípios das OSC sobre a Eficácia do Desenvolvimento não são suficientes para lidar com a “onda de legislação” contra a Sociedade Civil africana. Antes pelo contrário, têm tido um efeito perverso na relação dos Estados africanos com a Sociedade Civil no que toca à necessidade de alinhamento com as políticas governamentais:
“Ao concentrarem-se na Declaração de Paris, não prestando atenção à AAA, os doadores colocam, cada vez mais, as OSC na linha de fogo dos Governos, servindo de justificação para o controlo das OSC” (…) [Os Governos] interpretam o [princípio] de Alinhamento como uma obrigação de estar de acordo com a Agenda do Governo; a questão da Apropriação como Apropriação pelo Governo e o de Prestação de Contas Mútua como obrigação das ONG de prestarem toda a Informação aos Governos”.
(ACPPP, 2011: 6)

Todos os estudos[3] que serviram de base para a elaboração deste documento apontam para a existência de medidas cada vez mais sofisticadas para dificultar a movimentação da Sociedade Civil em muitos países africanos, mas algumas das medidas podem ser encontradas também em alguns membros da OCDE. Verificam-se obstáculos legais e administrativos (medidas de contra-terrorismo e de segurança, medidas no plano fiscal, entre outras), barreiras à entrada nos países, burocracia excessiva e exigências cada vez mais rigorosas à criação de organizações, quadros de participação na definição de políticas que são meramente formais, recurso a OSC como instrumentos das políticas oficiais. Em alguns países existem ainda outros obstáculos como a dissolução arbitrária de ONG, supervisão e controlo desproporcionados por parte do Estado, bem como a criação de ONG “governamentais” ou transformação no mesmo sentido de ONG já existentes.

Mais recentemente, em Setembro de 2011, a plataforma internacional da Sociedade Civil CIVICUS[4] lançou o relatório “Bridging the Gaps - Citizens organisations and dissociation” que analisa o Índice de Sociedade Civil no período de 2008 a 2011[5]. O documento vem reiterar a conclusão do estudo desenvolvido pela ACPPP, ao considerar que a Sociedade Civil está a sofrer um dos maiores momentos de crise e de mudança, nomeadamente pressões a nível político e económico. Dos 35 países analisados a nível mundial, o Índice da Sociedade Civil revela que quase metade das OSC analisadas (47%) encontra um ambiente legal muito limitado para o exercício das suas actividades e 21% das OSC relata que são alvo de restrições ou de ataques directos do governo central e local (CIVICUS, 2011).

Neste contexto, as OSC consideram indispensável um acordo mínimo em Busan no que se refere à definição de critérios sobre o ambiente favorável, que devem estar de acordo com normas internacionais de Direitos Humanos, incluindo a liberdade de associação, a liberdade de expressão, o direito de operar num ambiente sem interferências do Governo, o direito de comunicar e cooperar, o direito de procurar e assegurar fontes de financiamento diversificadas e o dever do Estado de proteger (Better Aid, 2011).


A Transparência como condição para uma Ajuda Efectiva

No seu debate as OSC vêm considerando que a transparência e apropriação democrática são cada vez mais indissociáveis. De acordo com a Reality of Aid,
“Sem transparência na informação, parlamentares e cidadãos têm poucas ferramentas para obrigar o Governo a prestar contas; quando o Governo e a sua burocracia limitam fortemente a apropriação e o controlo da prestação de contas, floresce uma cultura de corrupção, e a vontade política para implementar mecanismos de transparência e de prestação de contas torna-se débil”
(Reality of Aid, 2011: 13)

A transparência, chama a atenção Lobo (2011), deve ser entendida de forma lata, desde a definição de objectivos, motivações e fins até à partilha de informação sobre meios e resultados, o que contribui para o reforço da legitimidade dos diversos parceiros envolvidos e para uma maior igualdade entre doadores e países parceiros.

Sobre esta questão, as OSC reconhecem que foram dados passos importantes em Acra. Durante o 3.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da AJuda, foi apresentada a IATI – International Aid Transparency Initiative[6] (Iniciativa Internacional de Transparência da Ajuda), resultante do esforço conjunto de Organizações da Sociedade Civil e alguns Governos e que tem assumido relevo ao longo dos últimos três anos.

Trata-se de uma coligação constituída por Governos e instituições doadores e de Países em Desenvolvimento e ONG que afirmam o seu acordo com o postulado político contido na Declaração de Acra da IATI – ou seja, a transparência da informação promove parcerias mais efectivas e acelera o Desenvolvimento e a consequente redução da pobreza, aumentando a apropriação e a prestação de contas mútua, reduzindo a corrupção e melhorando a canalização de Ajuda. Assim, os doadores signatários da declaração comprometem-se a fornecer informação completa e em tempo útil sobre os compromissos com os Países em Desenvolvimento, para que estes possam conhecer com precisão os fluxos de Ajuda para os seus orçamentos. Estes são apenas alguns princípios-chave dos cerca de 20 pontos que constituem a declaração[7] assinada então por oito organizações internacionais e 12 países Doadores e endossada por 22 Países em Desenvolvimento – africanos, asiáticos e latino-americanos – mas a que muitos outros vieram a aderir. No momento de elaboração deste documento a UE discute a possibilidade de a adesão à IATI vir a ser considerada como vinculativa.

Desta iniciativa, destaca-se a ausência de Portugal, país onde o debate é muito limitado, sendo reduzido praticamente ao plano técnico. Embora Portugal esteja vinculado ao fornecimento de informação previsto nos standards da OCDE, a verdade é que a IATI e os seus standards (os “IATI Standards”[8]) surgem num contexto assumido politicamente, de procura de mudanças qualitativas e abrangendo a totalidade dos actores e não só os Governos dos países membros do CAD.

A posição de Portugal neste domínio passou aliás a ser alvo de atenção de outras redes e iniciativas. Por exemplo, em Março de 2011, a Acess Info Europe lançou um relatório sobre as negociações da reforma das normas de transparência na UE, intitulado “O segredo de Estado das reformas da transparência da EU”, do qual destaca o “silêncio administrativo” de Portugal, que não terá respondido a vários pedidos de informação da organização.
Na preparação para Busan, a IATI e campanhas internacionais, como a Publish What You Fund, têm multiplicado iniciativas de promoção do papel da transparência da Ajuda ao Desenvolvimento como condição para a Eficácia da Ajuda e do Desenvolvimento, nomeadamente através de o lançamento da petição “Make Aid Transparent”[9]. Como destaca a Publish What You Fund no site oficial da petição, 2011 é um momento crítico e um “empurrão” público neste momento na exigência de maior transparência pode fazer a diferença.

Portugal não pode assim continuar à margem da discussão actual, não pode continuar a situá-la dominantemente num contexto interno ao aparelho do Estado e num plano meramente técnico. Iniciativas promotoras de debate e reflexão e disponibilização de informação (como o projecto desenvolvido pela ACEP e co-financiado pelo IPAD “Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento” e respectivo blogue http://cooperacao-desenvolvimento.blogspot.com/ ou as levadas a cabo pelo Grupo “AidWatch” constituído por ONGD da Plataforma portuguesa) são sinais de disponibilidade e empenhamento de organizações de diversos tipos de procurarem contribuír para este debate e para um compromisso de co-responsabilidade neste domínio.


O Fórum Aberto para a Eficácia do Desenvolvimento das OSC e as expectativas para Busan

O calendário das OSC não se limita aos Fóruns de Alto Nível, tendo-se reunido por diversas vezes nos últimos anos para delinear uma agenda própria (alternativa e/ou complementar) à visão de Governos e organizações internacionais. Um dos marcos recentes na concertação da Sociedade Civil a nível mundial foi a criação do Fórum Aberto para a Eficácia do Desenvolvimento das OSC[10] (Open Forum for CSO Effectiveness Development). Num primeiro encontro exploratório das OSC, em Junho de 2008, em Paris, foi criado um Grupo Facilitador, com 25 organizações, que incluía redes reconhecidas e influentes de África, América Latina, Ásia, América do Norte, Europa, Médio Oriente, Pacífico e ainda algumas redes internacionais de OSC e uma rede de organizações de mulheres. Desse momento até à primeira Assembleia Global, realizada cerca de dois anos depois em Istambul, na Turquia (Setembro 2010), um caminho muito importante foi percorrido, com um horizonte de longo prazo (Proença, 2011).

Um dos primeiros passos foi a procura de consensualizar um conjunto de objectivos centrais que vieram a ser formulados do seguinte modo:

- criação de um processo aberto, cuja credibilidade e responsabilidade assentam no seu carácter inclusivo e na transparência. O fórum desenvolver-se-á em torno de processos nacionais, temáticos/sectoriais, regionais e globais, de forma a tornar as OSC capazes de contribuir para a formulação de um consenso sobre a Eficácia do Desenvolvimento da Sociedade Civil;

- o desenvolvimento de uma visão das OSC sobre a Eficácia do Desenvolvimento, através de um diálogo político a nível nacional e internacional, que tenha em conta a centralidade de conceitos como os dos direitos humanos, igualdade de género, sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento de capacidades dos actores do Desenvolvimento, de forma a conduzir às mudanças pretendidas, enquanto base da eficácia para as OSC assim como para os doadores e os governos;

- um acordo sobre princípios comuns no que se refere à Eficácia do Desenvolvimento das OSC, através do diálogo e da aprendizagem. Os princípios partilhados são diferentemente aplicados pela diversidade de OSC, em contextos regionais ou sectoriais muito diversos;

- um acordo sobre grandes linhas de orientação sobre como aplicar esses princípios e documentação sobre boas práticas e mecanismos apropriados a cada país e região;

- um acordo global sobre padrões mínimos de ambiente favorável para o 4º Fórum de Alto Nível, na Coreia do Sul, no final de 2011.

Em 2010, Istambul vem assim a ser um marco a vários títulos: um marco na conceptualização e consensualização da proposta de um conjunto de princípios base para a qualidade da intervenção no Desenvolvimento por parte das OSC, adaptáveis a cada contexto nacional ou sector; um marco na participação e diálogo entre redes de Sociedade Civil de todos os continentes (o “tradicional” protagonismo europeu foi aliás suplantado por processos preparatórios muito consistentes e participados nos outros continentes); um marco pela visão de longo prazo, de construção de uma agenda conjunta para um Desenvolvimento equitativo e sustentável.

No final de Junho de 2011, a Sociedade Civil reuniu-se em Siem Reap (Camboja) na 2.ª Assembleia Geral do Fórum Aberto para finalizar o Quadro Internacional da Eficácia do Desenvolvimento das OSC[11] que representa uma declaração da Sociedade Civil global sobre os princípios, as linhas gerais e as condições externas dos Governos e doadores para a Eficácia do Desenvolvimento das OSC. O também denominado Consenso de Siem Reap é o culminar de dois anos de trabalho – 70 consultas nacionais, 9 workshops regionais e 8 processos temáticos[12] – para consolidar as várias visões da Sociedade Civil em torno do seu contributo como actor de Desenvolvimento.

Os Oito Princípios de Istambul – que devem guiar o trabalho e as práticas das OSC, seja em situações de conflito ou em contextos de paz, em diferentes áreas de actuação – são parte integrante do documento final que o Fórum Aberto irá levar ao 4.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda.

E o que esperam as OSC de Busan? Em primeiro lugar, pretendem assegurar a sua plena participação, na sua diversidade, como actores de Desenvolvimento em complementaridade com outros actores, através da aprovação e reconhecimento ao mais alto nível dos Princípios de Istambul (2008) e do Consenso de Siem Reap (2011).

Além disso, a Sociedade Civil exige a aprovação de padrões mínimos na definição de políticas, leis e práticas dos países doadores e beneficiários para a criação de um efectivo ambiente favorável e de apropriação democrática no processo de Desenvolvimento. Segundo a Better Aid (2011), a Sociedade Civil espera que de Busan resulte um documento inclusivo com compromissos a prazo e que inicie um conjunto de reformas profundas na arquitectura global da Cooperação para o Desenvolvimento, baseada na soberania e na coerência política.

Em suma, as OSC esperam o reconhecimento de quatro dimensões da Eficácia do Desenvolvimento:

- a apropriação democrática como o centro da agenda da Eficácia do Desenvolvimento;

- a implementação de estratégias de Desenvolvimento e de práticas baseadas nos Direitos Humanos;

- a afirmação e o apoio das OSC como actores independentes de Desenvolvimento, de pleno direito;

- a definição de uma arquitectura de Ajuda ao Desenvolvimento inclusiva, com espaço público de discussão das tendências e direcções da Cooperação para o Desenvolvimento.


As OSC portuguesas, o debate sobre a sua eficácia na Cooperação e no Desenvolvimento e o papel da auto-regulação

O contributo das OSC para a agenda da Eficácia do Desenvolvimento não passa apenas por acções de lobby e advocacy junto dos seus Governos e organizações multilaterais, apelando a uma melhor qualidade da Ajuda ao Desenvolvimento. A Eficácia da Ajuda e do Desenvolvimento deve contar também com os contributos da própria Sociedade Civil, com os seus próprios princípios, os seus mecanismos de auto-regulação e a monitorização destes.

No que se refere à auto-regulação, num processo simultâneo à evolução do reconhecimento das OSC como actores de Desenvolvimento, um grande número de iniciativas têm sido desenvolvidas nos últimos anos, em diversos países, que incluem códigos de ética e de conduta, esquemas de certificação, ferramentas de auto-avaliação e serviços de disponibilização de informação.

Existem exemplos de boas práticas nesta área da parte de plataformas de ONG, nomeadamente na América Latina[13] e Ásia, que promovem iniciativas de transparência e de prestação de contas entre membros. Também as Organizações Não Governamentais Internacionais aprovaram em 2006 a INGO Accountability Charter[14], que surge como uma espécie de compromisso comum no que diz respeito à transparência e à responsabilidade de actuação. A Carta identifica e define os princípios, políticas e práticas comuns, ao mesmo tempo que fomenta contactos com outros grupos de interesse e melhora o rendimento e a eficácia das organizações signatárias.

Muitas plataformas e redes europeias dispõem de diversos tipos de Códigos de conduta mais globais, de relacionamento com as respectivas sociedades e com os diversos stakeholders e não apenas para o domínio da transparência ou da accountability. Nesse quadro caberão muitas questões ligadas ao processo da Cooperação e do Desenvolvimento e não só aos resultados obtidos. São questões que permitirão aferir o que chamaríamos de valor político acrescentado das OSC no domínio do Desenvolvimento: como a qualidade das relações estabelecidas com parceiros e populações, a capacidade de inovação e de risco, a capacidade de articulação entre as diversas dimensões do trabalho de Desenvolvimento, como sejam a sensibilização, a comunicação, a advocacy, o lobby, ou a Cooperação para o Desenvolvimento.

Resta no entanto saber como e em que medida é monitorizado o cumprimento desses códigos e os resultados de algumas experiências de exames inter-pares (as peer reviews), no campo das OSC, não permitem ainda conclusões.

Porém, Portugal tem estado relativamente à margem desse processo. Para além de não existir um documento de princípios das ONGD portuguesas (para além da Carta Europeia das ONG, cuja aceitação é condição de pertença à Plataforma portuguesa de ONGD),  há ainda uma ausência de debate entre ONGD sobre esta questão e, sobretudo, uma ausência de auto-questionamento sobre a importância da auto-regulação num quadro de reconhecimento da sua responsabilidade social e política no contexto da Cooperação para o Desenvolvimento portuguesa.

A proximidade do 4.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda pode servir de alavanca para dar maior expressão às iniciativas dispersas e limitadas de debate em Portugal sobre o contributo (actual e futuro) das ONGD portuguesas para a Eficácia do Desenvolvimento e sobre os princípios que devem nortear a relação das OSC entre si, a relação com os financiadores (na Cooperação bilateral e multilateral) e a relação com as OSC parceiras dos Países em Desenvolvimento. O debate iniciado em Dezembro de 2010, promovido pela ACEP e a Plataforma portuguesa de ONGD, com a colaboração do Open Forum for Development Effectiveness, e a sua continuação no grupo AidWatch da Plataforma (processo que já incluiu a concepção e aplicação de uma ferramenta de análise e avaliação internos), são elementos encorajadores, mas precisam de uma agenda com metas mais precisas, calendário, espaços de alargamento a outros. E precisam de instâncias de formalização e de vinculação.

O envolvimento na discussão internacional, a adopção e aplicação dos Princípios de Istambul e o reconhecimento do Consenso de Siem Reap, poderão servir de base para este processo, que precisa ser também de auto-questionamento, sobre as bases da sua legitimidade enquanto actores Não Governamentais de Desenvolvimento portugueses, intervindo na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento[15].

Busan, considerado um ponto de chegada sobre a agenda da Eficácia da Ajuda e do Desenvolvimento, poderá ser motor deste processo de definição dos princípios por que se regem, do papel (e lugar) das ONGD portuguesas e da sua relação com a sociedade portuguesa, com outros actores estatais e não-estatais, e, em particular, com os seus parceiros nos Países em Desenvolvimento.

Ana Filipa Oliveira e Fátima Proença


Nota: todos os documentos referidos neste texto estão acessíveis em www.cooperacao-desenvolvimento.blogspot.com, blogue do projecto “Portugal e África: Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento, co-financiado pelo IPAD

[1] Sobre o espaço político das OSC africanas, a Act Alliance produziu dois estudos: Changing political spaces of Civil Society Organisations, 2011, disponível em http://www.acep.pt/portals/0/BlogueMelhorCoop/ChangingPoliticalSpaces.pdf e Political Space of Civil Society Organisations in Africa: Civil Society, Aid Effectiveness and Enabling Environment. The Cases of Burkina Faso, Ghana and Zambia, 2010. Estudo realizado em parceria com a AACC – All African Conference of Churches e a EED – Protestant Development Service, disponível em http://www.acep.pt/portals/0/BlogueMelhorCoop/CSOAfrica_PoliticalSpace.pdf
[3] O relatório foi elaborado com base em 17 estudos conduzidos entre 2008 e 2011, em mais de 30 países africanos e servirá como documento de trabalho para discussão sobre a definição de ambiente favorável no 4.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, em Busan
[4] CIVICUS – World Alliance for Citizen Participation: http://www.civicus.org
[7] Mais informação sobre a questão da transparência no boletim Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento, Jan/11
[8] Em 2011, a IATI lançou um site dedicado exclusivamente aos “IATI Standards”, ou seja, os padrões internacionais que os signatários da iniciativa devem implementar para hamonizar a difusão de informação sobre a canalização da Ajuda ao Desenvolvimento (ler mais em http://iatistandard.org/)
[9] Site oficial da petição “Make Aid Trasparent”: http://www.makeaidtransparent.org/
[10] Open Forum for CSO Effectiveness Development em http://www.cso-effectiveness.org
[12] O sindicalismo, a igualdade de género e os direitos das mulheres, os movimentos sociais dos mais marginalizados e o papel das OSC em situações de conflito foram alguns dos temas tratados neste processo
[13] A título de exemplo, ler o documento sobre a auto-regulação produzido por ONG colombianas em http://www.cso-effectiveness.org/IMG/pdf/autocontrolong.pdf
[14] INGO Accountability Charter em http://www.ingoaccountabilitycharter.org/
[15] Sobre esta questão ler a entrevista à presidente da Plataforma Portuguesa das ONGD, Hermínia Ribeiro, no boletim Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento de Dezembro de 2010, disponível em http://cooperacao-desenvolvimento.blogspot.com/2011/01/perguntas-com-resposta-tem-de-haver.html


[1] Mais informações sobre este processo disponíveis em http://www.cso-effectiveness.org/-advisory-group-on-civil-society,021-.html?lang=en
[2] Sobre esta questão, consultar o documento de referência: Advisory Group on Civil Society and Aid Effectiveness – Synthesis of Findings and Recommendations, CAD/OCDE, Agosto 2008, disponível em


BIBLIOGRAFIA

Advisory Group on Civil Society and Aid Effectiveness (2007), Civil Society and Aid Effectiveness – Concept Paper, disponível em http://siteresources.worldbank.org/ACCRAEXT/Resources/4700790-1208545462880/AG-CS-Concept-Paper.pdf (Acedido a 15 de Setembro de 2011)

ACPPP (2011), Democracy, AID and Disenabling Environment: Motivation and Impact of Disenabling Environment on Development work in Africa, ACPP, disponível em http://www.cso-effectiveness.org/IMG/pdf/disenabling_environment-2.pdf (Acedido a 30 de Maio de 2011)

Better Aid (2011), CSOs on the road to Busan. Key messages and proposals, Better Aid e Open Forum for CSO Development Effectiveness

CIVICUS (2011), Bridging the gaps: Citizens, Organisations and Dissociation, disponível em http://civicus.org/downloads/Bridging%20the%20Gaps%20-%20Citizens%20%20Organisations%20and%20Dissociation.pdf (Acedido a 5 de Setembro de 2011)

Concord Europe (2010), CONCORD position paper on CSO enabling environment for the 4th High-Level Forum on Aid Effectiveness in Busan, South Korea, disponível em http://bit.ly/concord_CSOenablingEnvironment (Acedido a 19 de Setembro de 2011)

Lobo, M. C. (2011), “A Transparência como Caminho para a Responsabilização”, in Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento, Jan/11, também em http://cooperacao-desenvolvimento.blogspot.com/2011/04/transparencia-como-caminho-para.html

OCDE (2006), Declaração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento, OCDE, disponível em http://www.oecd.org/dataoecd/56/41/38604403.pdf

OCDE (2009), Civil Society and Aid Effectiveness. Findings, Recommendations and Good Practice, Colecção Better Aid/OCDE, disponível em http://goo.gl/otPkI (Acedido a 15 de Setembro de 2011)

Proença, F. (2010), “Sociedade Civil, Eficácia e Desenvolvimento”, in Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento, Dez/2010, também em http://cooperacao-desenvolvimento.blogspot.com/2010/12/sociedade-civil-eficacia-e_13.html

Reality of Aid (2011), Achieving Progress for Development Effectiveness in Busan: Na Overview of CSO Evidence, Realiy of Aid, disponível em http://www.awid.org/content/download/119146/1354131/file/Reality%20of%20Aid%202011%20Report%20Overview.pdf (Acedido a 2 de Setembro de 2011)

Tujan, A. (2011), “Demanding democratic ownership”, in D+C, disponível em http://www.inwent.org/ez/articles/197562/index.en.shtml (Acedido a 1 de Setembro de 2011)


LINKS ÚTEIS
Blogue do projecto ACEP “Melhor Cooperação, Melhor Desenvolvimento”

3.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda em Acra (site oficial)

4.º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda em Busan (site oficial)

Afrodad

AidInfo

ALOP

Better Aid

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