quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

ONGD – IDENTIDADE, INTERVENÇÃO E AUTO-REGULAÇÃO


O termo ONG engloba um vasto universo de organizações cuja natureza e fins diferem bastante entre si, não havendo uma definição precisa e unanimemente aceite. Podemos dizer que as ONG são organizações formalmente constituídas, independentes, que actuam em diversas áreas (direitos humanos, ambiente, migrações, desenvolvimento, acção humanitária, etc.) com vista a gerar melhorias na sociedade, sejam de impacto mais limitado no tempo, sejam promotoras de mudanças estruturais.

O universo das ONG abrange áreas de trabalho e realidades muito díspares. Focar-nos-emos aqui nas ONG que intervêm na Cooperação para o Desenvolvimento, na Ajuda Humanitária e de Emergência, bem como nos domínios da Educação e Sensibilização para o Desenvolvimento e na Advocacia, ou seja, aquelas que foi convencionado designar como ONG de Desenvolvimento (ONGD). Na sua base legal define-se que dos seus fins não constam os fins lucrativos (tal significando no entanto que podem desenvolver actividades económicas lucrativas em domínios coerentes com a sua missão e facilitadoras de condições económicas para o seu prosseguimento, mas não podem distribuir os lucros entre os membros), nem político-partidários, sindicais, militares ou religiosos. com vista a um mundo mais justo, mais inclusivo e menos desigual.  

Nos últimos 20 anos, as ONGD ganharam visibilidade e reconhecimento, muito devido à sua proximidade com as populações, à sua flexibilidade e capacidade de acção rápida, experimentação de abordagens inovadoras, mas devido também ao seu papel de advocacia, de monitoria de políticas e de defesa dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, a sua progressiva profissionalização favoreceu a capacidade de se afirmarem enquanto actores com múltiplas competências, de pleno direito e parceiros-chaves, chamados, em muitos países, a participar na definição das políticas de Cooperação e de Desenvolvimento.  

As ONGD enquanto actores do Desenvolvimento
As ONGD são actores incontornáveis do Desenvolvimento, quer pelas finalidades que prosseguem e o trabalho que desenvolvem, quer pelo volume de recursos, incluindo financeiros, que mobilizam e gerem. As actividades de advocacia em prol do desenvolvimento e o debate em torno da definição de prioridades políticas e da sua monitorização contribuem para a sensibilização das populações dos países financiadores de Ajuda Pública ao Desenvolvimento e também para a percepção da opinião pública em relação à Cooperação para o Desenvolvimento. Concorrem ainda para a implementação das políticas de cooperação nacionais e europeia. De acordo com a OCDE, em 2009, as ONG geriram pelo menos 13% da totalidade da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) dos países membros do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD)[1] (a quota em Portugal, embora com sentido crescente, não ultrapassa ainda os 3%). 

Praticamente todos os países membros do CAD/OCDE[2] têm uma política de colaboração com as organizações da sociedade civil. No caso de Portugal, esta é parte integrante da Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa (2005-2009)[3], cujo balanço destaca o papel activo da sociedade civil portuguesa e o incremento do diálogo entre o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD) e a Plataforma Portuguesa das ONGD[4].

Em 2008, governantes e responsáveis de agências multilaterais reconheceram, no Terceiro Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, a importância das OSC “enquanto actores de desenvolvimento a título próprio, cujos esforços complementam os dos governos e do sector privado”[5]. Em Acra, países financiadores da APD e os Países em Desenvolvimento (PED) assumiram o compromisso de aprofundar a colaboração com as OSC, criando e/ou reforçando um ambiente favorável à sua participação, compromisso reiterado em Busan em Dezembro de 2011[6], onde as OSC viram reconhecido o seu papel como promotoras de acesso aos direitos e na definição, monitorização e implementação das políticas de desenvolvimento.

As ONGD enquanto facilitadoras de acesso a bens públicos
Nos PED as ONGD participam em iniciativas que facilitam o acesso das comunidades a serviços sociais básicos, politicas públicas onde se registou um enorme desinvestimento por parte de muitos Estados (e mesmo à anulação das suas capacidades internas), a partir dos Programas de Ajustamento Estrutural, promovidos pelo FMI e Banco Mundial e adoptados pelos PED como condição de acesso a apoio externo. Devido em parte à sua grande proximidade às populações, as agências financiadoras têm vindo a considerar cada vez mais as ONGD como parceiras-chave para o objectivo global de erradicação da pobreza.
Em simultâneo verifica-se um aumento de projectos da iniciativa das agências financiadoras e por elas desenhados, em que as ONGD se limitam ao papel de executantes, num novo segmento de mercado que garante a sua sustentabilidade financeira. No entanto, estas situações de subcontratação, em que as ONGD estrangeiras garantem uma execução de projectos e um “reporting” de acordo com os padrões de exigência das instituições financiadoras, têm vindo a gerar efeitos negativos nas ONGD locais, (e por vezes para os próprios Estados dos PED) que se vêm subalternizadas e substituídas, pondo assim também em causa a durabilidade e sustentabilidade futura e perpetuando a dependência da Ajuda ao Desenvolvimento.
Encontramo-nos assim perante a necessidade de debater e pensar o papel das ONGD, muitas vezes encarado como um papel de gestão de fundos e de projectos – papel que lhes tolhe em parte a sua capacidade de formular propostas e gerar mudanças, e as acantona numa esfera de controle por parte dos doadores.

O que distingue as ONGD dos restantes actores da Cooperação
As ONGD têm um papel que vai muito além da facilitação do acesso das comunidades a serviços que os Estados podem não estar em condições de assegurar. Elas têm por fim o objectivo de suscitar mudanças sócio-económico-políticas, cabendo-lhes assim também um papel de sensibilização e de advocacia e influência social e política. Fazem parte do debate pela qualidade da democracia e constituem-se como força de pressão, chamando a atenção para questões como a abordagem baseada nos direitos, sustentabilidade ambiental, as questões da transparência, da luta contra a corrupção, a coerência das políticas nacionais. Ao contribuírem para monitorização das políticas nacionais e programas internacionais, constituem-se como força de mudança – um exemplo disto é a plataforma Better Aid que representou a sociedade civil nos Fóruns de Acra e Busan, com resultados muito concretos nas decisões políticas aí tomadas. As ONGD tornaram-se de facto num elemento importante, e reconhecido, da governação democrática mundial.

As ONGD e as relações de parceria internacional
para o desenvolvimento
Embora sejam actores com a mesma natureza, as ONGD do mundo desenvolvido e as dos PED não conseguiram quebrar as relações assimétricas de poder existentes. Verifica-se aliás uma tendência crescente, por parte de ONGD europeias de competir com as ONGD dos PED para a obtenção de fundos, ou reduzindo-as a um papel instrumental para obtenção de recursos financeiros “em parceria”, mas secundarizando a sua participação efectiva. O próprio conceito de “parceria” tem sido contestado e objecto de intenso debate nos últimos anos. Existe um pressuposto óbvio de que a Cooperação deve conduzir a uma maior autonomia, empoderamento e sustentabilidade das ONGD nos PED, levando a um maior reforço da Sociedade Civil local: com uma efectiva liberdade de determinar a sua própria estratégia e modelos de intervenção e, em conjunto, contribuírem para a construção de uma relação horizontal inter-pares, em vez de relações que bloqueiam as organizações dos Países em Desenvolvimento em relações verticais de poder e na perpetuação da dependência.
Por outro lado muitas ONGD europeias dependem financeiramente de fundos públicos, o que limita a sua flexibilidade e independência, levando-as muitas vezes a impor condições às ONGD suas parceiras dos Países em Desenvolvimento. Além disso, existem dados objectivos que configuram uma ausência de confiança da parte de muitas ONGD europeias nas suas congéneres dos Países em Desenvolvimento, dando mesmo lugar a perguntar se não se trata de travar de facto as formas de financiamento directo às ONGD nos Países em Desenvolvimento.

Existe outra dimensão que pode representar um outro factor de desequilíbrio de poder: as representações e imagens criadas sobre os Países em Desenvolvimento. À semelhança dos media, nas últimas décadas, a representação de África e da Ásia tem sido construída também por imagens difundidas pelas organizações internacionais e ONGD, numa tentativa de mostrar a sua contribuição para melhorar a vida das populações. O recurso a imagens de calamidade, pobreza ou conflito constrói representações das populações locais como actores passivos, apenas à espera de ajuda externa. Na última década assiste-se a um debate – interno e externo – nalgumas ONGD sobre o seu papel como mediadoras entre a sociedade onde se inserem e as sociedades com quem cooperam. Porém, a prática de ocultação das ONGD parceiras na comunicação das ONGD europeias é ainda dominante, dando origem a uma representação unilateral dos Países em Desenvolvimento.  

Da necessidade da auto-regulação
As ONGD têm-se vindo a constituir como força de pressão sobre os seus governos, no sentido de uma maior accountability e transparência por parte destes. Todavia, as suas próprias práticas nem sempre são consistentes com estas reivindicações. A prestação de contas, por exemplo, é uma das áreas nas quais as ONGD precisam imperiosamente de melhorar o seu desempenho, publicando de forma pró-activa, clara e atempada os seus relatórios de actividades e financeiros - uma boa prática que lhes permitirá reforçar a sua credibilidade junto dos doadores e do público em geral, não só relativamente ao dinheiro público, mas também as contribuições privadas. Mas convém não esquecer que a prestação de contas não pode ser apenas “para cima”, ou seja para com os financiadores, mas deve ser também para com os outros parceiros e populações envolvidas e não se esgota no tema da gestão eficiente dos recursos e no alcance dos objectivos.

O papel progressivamente mais importante das ONGD, quer na esfera social quer na esfera política, acarreta um maior escrutínio sobre as suas actividades e sobre as práticas de gestão. O tema da auto-regulação das ONGD tem-se tornado cada vez mais premente, havendo necessidade de debater e definir princípios e modos de actuação comuns, no sentido de reforçar a coerência com os princípios, a responsabilização e a sua contribuição efectiva para o desenvolvimento, num pano de fundo de relações de poder equilibradas.

A auto-regulação pode assumir variadíssimas formas como, por exemplo, a adopção de códigos de ética e conduta, com o objectivo desenvolver mecanismos de controle que balizam as práticas das ONGD e dêem confiança aos seus stakeholders. No entanto, estes códigos, para serem efectivos, precisam de ser vinculativos e definirem a instância de poder de monitorização (seja ela externa seja inter-pares).

Os mecanismos de auto-regulação passam assim pela afirmação da responsabilidade social das organizações e pela discussão de questões éticas, não só no plano financeiro. Uma postura ética exige tornar claro e público os valores pelos quais as ONGD se regem, valores que devem ser postos em prática em toda a linha de actuação da organização: na utilização dos fundos, na política de comunicação, na política de gestão do pessoal, etc. Os Princípios de Istambul, aprovados em Setembro de 2010, são um exemplo de mecanismo de auto-regulação, essencial para incrementar a accountability das ONGD.

Relação das ONGD com o Estado
Os governos participantes do Processo de Paris sobre a Eficácia da Ajuda assumiram-se como responsáveis pela criação de um ambiente favorável à actuação das ONGD, a começar pela criação de condições legais nesse sentido. Em Portugal, o quadro legal foi definido em 1998, num Estatuto das Organizações não Governamentais de Cooperação para o Desenvolvimento (Lei n.º 66/98 de 14 de Outubro[7]).

A Plataforma Portuguesa das ONGD (constituída em 1985) tem desempenhado um papel importantíssimo para o reconhecimento das ONGD como legítimos actores da Cooperação. Contudo, a reivindicação pelo direito de participação na definição das políticas e programas de cooperação continua actual.

Apesar da relação das ONGD com o Estado estar sujeita a oscilações (dependendo aliás demasiado do perfil das pessoas com a responsabilidade política e institucional no sector e menos das instituições propriamente ditas), foram concretizados avanços significativos. Nos últimos anos, a criação do Fórum da Cooperação para o Desenvolvimento, que reúne as diversas expressões da sociedade civil com os responsáveis públicos do sector, contribuiu consideravelmente para um reconhecimento mútuo e para a criação de um espaço de debate de políticas, apesar da direcção centralizada e do direito de iniciativa ter sido limitado aos responsáveis governamentais e das instituições do Estado. A adopção de Normas e Critérios para as Candidaturas de ONGD ao co-financiamento de projectos de Cooperação e de Educação para o Desenvolvimento, bem como a abertura regular dessas candidaturas são outros exemplos de avanços positivos.   

A independência das ONGD face ao Estado é uma sua mais-valia no sector da Cooperação para o Desenvolvimento. É essa independência que lhes permite por um lado definirem as suas prioridades em articulação com os seus parceiros de desenvolvimento e, por outro, desempenharem o papel de monitoria de políticas atrás referido. Mas a independência é ao mesmo tempo o calcanhar de Aquiles das ONGD. E a saída tem que ser encontrada por ambos os lados: do lado do Estado com a recusa de tentações de controle e instrumentalização, antes contribuindo para a potenciação deste capital de desenvolvimento e de democracia; do lado das ONGD procurando consolidar e alargar alianças, acessos a outras fontes de recursos, num processo que se poderia chamar de internacionalização socialmente responsável.

pela equipa da ACEP
(Ana Filipa Oliveira, Fátima Proença e Liliana Azevedo)


[1] OECD (2011), How DAC members work with civil society organisations: an overview
[2] O CAD da OCDE é composto por 23 paises:  Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos da América, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Itália, Irlanda, Japão, Coreia do Sul, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça, e Comissão Europeia
[6] Busan Partnership Agreement for Effective Development Cooperation, Artigo 20, p.6, www.aideffectiveness.org/busanhlf4/images/stories/hlf4/OUTCOME_DOCUMENT_-_FINAL_EN.pdf

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