quarta-feira, 30 de março de 2011

OS EXAMES INTER-PARES
E A EFICÁCIA DO DESENVOLVIMENTO

por Raquel Freitas
Investigadora do CIES – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia  do ISCTE-IUL


Os “exames inter-pares” são um mecanismo utilizado regularmente em diversas áreas de actuação da OCDE desde a sua criação. Na área da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) tais exercícios são levados a cabo pelo Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD/OCDE) para cada um dos 24 membros, com um intervalo médio de 4-5 anos. Enquanto fórum responsável pela definição de normas internacionais e políticas sobre Cooperação para o Desenvolvimento, o CAD/OCDE examina cada ano 5 a 6 programas de Estados membros.
O objectivo geral dos exames inter-pares é ajudar o país examinado a melhorar a sua política oficial de Ajuda Público ao Desenvolvimento; identificar e adoptar melhores práticas e procedimentos na APD; e verificar o cumprimento de critérios e princípios acordados, designadamente ao nível da quantidade e qualidade.
O elemento chave para a eficácia deste mecanismo é o efeito de pressão exercido pelos pares ao longo do processo do exame. Os exames são levados a cabo por um painel de dois países membros do CAD/OCDE e por peritos do Secretariado do CAD/OCDE, sedeado em Paris, mais um especialista em Ajuda Humanitária. Cada exercício inclui visitas ao país examinado, sendo realizadas entrevistas aos funcionários das instituições responsáveis pela cooperação ao nível político e técnico, mas também aos detentores de interesse (“stakeholders”), incluindo parlamentares e sociedade civil. São ainda organizadas visitas ao terreno, ou seja, aos Países em Desenvolvimento (ou países parceiros), onde é analisada a operação do País Doador e a implementação das principais políticas, princípios e orientações, em particular no que diz respeito a redução da pobreza, sustentabilidade, igualdade de género, bem como outros aspectos de desenvolvimento participativo e coordenação no terreno. Com base nesta informação é preparado um relatório pelo Secretariado do CAD/OCDE, que constitui a base para uma reunião de exame do CAD/OCDE na sede desta organização, onde os responsáveis pela cooperação do país examinado respondem às questões formuladas pela equipa examinadora.
O factor continuidade é também essencial na eficácia dos exames inter-pares, uma vez que os resultados são tornados públicos, e fornecem um conjunto de recomendações que podem orientar a mudança por parte das instituições responsáveis pela cooperação e constituem ao mesmo tempo um instrumento de monitorização da implementação dessas recomendações.

ENFOQUE
A análise dos exames inter-pares do CAD/OCDE centra-se nas linhas políticas e estratégias que orientam o sistema de Ajuda Pública ao Desenvolvimento. Percorrem áreas substantivas como a coerência das políticas para o desenvolvimento; a quantidade, canalização e eficácia da ajuda; questões organizacionais e mecanismos de gestão. É também analisada a Ajuda Humanitária e outras temáticas de especial interesse, que são alvo de um processo transversal de aprendizagem colectiva de todos os membros do CAD/OCDE. O exame aborda ainda os esforços desenvolvidos pelo país examinado ao nível da sensibilização pública sobre a importância da APD demonstração de resultados da cooperação e o apoio gerado junto da opinião pública para o aumento da quantidade e qualidade da APD, sendo valorizado também o papel do parlamento na política de Cooperação para o Desenvolvimento.

VANTAGENS E DESAFIOS
Trata-se de um mecanismo de responsabilização através da pressão dos pares, pelo que não prevê a existência de sanções. Depende de partilha de valores, do nível adequado de empenho dos responsáveis envolvidos, da confiança mútua, e da credibilidade do exercício.
A credibilidade do exame é fundamental e pode ser minada por examinadores pouco qualificados, análises enviesadas por interesses nacionais, critérios inadequados de avaliação, deficiente consulta aos detentores de interesse, tentativas do país examinado influenciar os resultados finais. Para a credibilidade do exame contribui também a relevância das recomendações, ou seja se estas se ficam por uma análise de procedimentos burocráticos ou se vão mais longe questionando elementos fundamentais da política de Cooperação para o Desenvolvimento. O recurso aos contributos da análise académica sobre a Política de Cooperação do país em causa confere um elemento de profundidade que em geral poderia ser melhor explorado pelos examinadores.
Através do exame promove-se a transparência nos procedimentos da Ajuda Pública ao Desenvolvimento. Apesar da orientação no sentido da transparência, existem questões que permanecem opacas ou que não são devidamente acompanhadas ao nível da implementação de recomendações dos exames, entre elas questões sensíveis como as relacionadas com a ajuda ligada, condicionalidade, transparência nas transferências de capitais, entre outras.
Na prática os exames inter-pares têm resultado em alterações fracas ou incompletas {Paulo, 2010 #217}. No entanto eles obrigam os responsaveis políticos pela APD a defenderem os resultados do exame perante os seus pares. A sua eficácia assenta também na estratégia de naming and shaming, ou seja, ao tornar públicos os resultados são evidenciados progressos, o que pode gerar dinâmicas políticas favoráveis de apoio à cooperação, mas são também apontadas as lacunas publicamente, obrigando os responsáveis a justificar as mesmas e a comprometer-se com as recomendações.
Note-se que estes exercícios são pela sua natureza também instrumentos diplomáticos, pelo que a dimensão de naming and shaming entre os pares nunca é demasiado acutilante. A estratégia de naming and shaming tem tanto mais impacto quanto maior for o debate público em torno da Ajuda Pública ao Desenvolvimento e da forma como ela é organizada. Embora estes exercícios incidam apenas sobre a cooperação financiada pelo Estado, representam também um momento de envolvimento da sociedade civil, quer no decurso do exame através das consultas feitas aos detentores de interesse, quer quando os resultados são tornados públicos, conferindo um instrumento de monitorização para a sociedade civil exercer pressão sobre o governo e melhorar as suas próprias práticas. O envolvimento dos media na divulgação dos resultados dos exames é fundamental para um escrutínio público alargado. Cabe também à sociedade civil aproveitar o momentum que se cria com a publicitação dos resultados para gerar mobilização e debate, processo no qual os parlamentares também têm uma responsabilidade fundamental.
Para além da responsabilização e publicitação, pretende-se com os exames inter-pares promover a aprendizagem e capacitação dos funcionários da cooperação. Os exames constituem um contributo fundamental para ajudar os Países Doadores, quer individual quer colectivamente, a melhorar através da identificação e partilha de lições e boas práticas. Individualmente os resultados produzem um guião de melhorias a implementar, enquanto que os temas especiais que são analisados transversalmente proporcionam uma oportunidade de aprendizagem colectiva, que se traduz em estudos temáticos com recomendações para melhorar orientações políticas. No entanto, existe pouca abordagem comparativa entre Países Doadores. Um exemplo de progresso nesta dimensão é o recente Plano de Acção da UE para atingir os ODM, que prevê um exame inter-pares interno sobre a APD COM).

A SOCIEDADE CIVIL E OS EXAMES INTER-PARES
A fase de preparação do exame proporciona um bom momento de debate sobre as principais questões e articulação das posições da sociedade civil, que podem ser partilhadas com os responsáveis pela cooperação. Nesta fase o país examinado submete um memorando ao CAD/OCDE onde enumera as áreas de progresso e os desafios que subsistem, e onde é sugerida documentação a ser consultada para a realização do exame. A sociedade civil pode aproveitar esta oportunidade para fazer chegar ao IPAD informação considerada relevante como contributo para este processo, num esforço de contribuir para a definição da agenda de trabalho, designadamente na escolha dos tópicos especiais. Por questões de transparência o IPAD deverá fornecer informação antecipada sobre a calendarização das actividades dos exames.
Durante a visita da equipa do CAD, é agendada uma reunião da sociedade civil e ONGD com a equipa do CAD. Neste momento é possível apresentar comentários sobre o memorando que o país examinado submeteu à equipa de examinadores do CAD. É também a oportunidade para passar as ideias essenciais sobre a cooperação em geral e sobre o relacionamento entre as ONG e a cooperação oficial.
Este ponto sobre o papel da sociedade civil suscita algumas das questões constantes do guião do CAD sobre a articulação entre o governo e a sociedade civil:
- Existe um enquadramento político que define a relação com organizações da sociedade civil nacionais e do Sul?
- Tem havido esforços no sentido de orientar a programação das ONG para países parceiros em particular ou para determinados sectores/temas, incluindo para os princípios da eficácia da ajuda?
- Existe apoio para melhorar a accountability (responsabilização/transparência/prestação de contas?) das organizações da sociedade civil e melhorar a informação sobre as suas actividades, tal como definido na Agenda para Acção de Acra?
- Qual é o financiamento para ONG/grupos da sociedade civil nacional, internacional e do Sul?
- Que processo é utilizado para seleccionar ONG e outras entidades para apoio da APD, e se este apoio é fornecido numa base pluri-anual?
- Existem processos distintos para ajuda ao desenvolvimento e ajuda humanitária?
- Como são monitorizadas e avaliadas as ONG?
No que diz respeito à fase de publicação e divulgação dos resultados, frequentemente, após a publicação dos resultados o país examinado convida o Director do CAD ou o Secretariado para uma apresentação pública do relatório, o que constitui um momento essencial de mobilização do debate público em torno das questões da ajuda ao desenvolvimento.
Por fim, a fase de follow-up, ou seja, de implementação das recomendações está a ser implementada com crescente regularidade visitas do CAD de meio-percurso para aferir o avanço da implementação das recomendações, as quais constituem também bons momentos de colocar informação relevante ao dispor dos responsáveis pela cooperação.

ALGUMAS QUESTÕES PARA O FUTURO:
Exames inter-pares e Eficácia da Ajuda ou do Desenvolvimento?
No quadro da crescente enfâse na Eficácia do Desenvolvimento, ou seja de enfoque das atenções nos impactos mais do que nos procedimentos, é de notar que os exames inter-pares ainda assentam mais sobre a quantidade da ajuda e a qualidade dos procedimentos e mecanismos, mas não analisam suficientemente os impactos no País em Desenvolvimento, onde são recolhidos poucos dados. O exame também não é reciproco, facto que tem sido notado designadament pelas Nações Unidas, que ao abrigo dos princípios de responsabilidade mútua e transparência sugerem a inclusão de representantes dos governos dos países parceiros, parlamentos e representantes da sociedade civil nos exames do CAD/OCDE.
Existem no entanto alguns esforços de revisão inter-pares entre Países do CAD e países africanos, como o chamado Exame Mútuo de Eficácia do Desenvolvimento em África, que tem sido levado a cabo pela UNECA e OCDE em conjunto, ao longo dos últimos três anos MRDE. No entanto ainda se trata de um mecanismo de análise da acção colectiva, onde as responsabilidades individuais acabam por ficar diluídas.

Exames inter-pares e novos Países Doadores?
O aparecimento de novos Países Doad,ores designadamente as potencias emergentes como China, India e países Árabes tem tido um impacto sobre a eficácia do mecanismo dos exames inter-pares tal como definido pela OCDE e sugere a questão de como se pode manter o compromisso com estes padrões num contexto de novos actores. Os novos Países Doadores não se têm mostrado particularmente abertos a enquadrar-se neste esquema de monitorização. Embora a prática de avaliação esteja presente na maioria destes novos países e haja mesmo preocupações comuns na área do desenvolvimento e redução da pobreza, facilitando assim a possibilidade de peer-reviews, estes países tipicamente dão menos valor à ideia de transparência e publicitação. No caso da China, a APD é dada num pacote que inclui elementos de cooperação económica, sendo difícil distinguir as duas e reclamar transparência. A questão está entre resistir e pressionar a China a alterar o seu modelo em favor do modelo dos exames inter-pares ou fazer uma síntese entre abordagens que acabe por gerar transparência do sistema como um by-product. Outros países  apresentam modelos próprios, como o Brasil, que fornece a grande parte da sua APD sob a forma de assistência técnica e transferência de conhecimentos.

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